sexta-feira, 13 de fevereiro de 2009

Anos de chumbo - O pesadelo


Passava da meia-noite quando atravessei o pequeno portão de casa, depois de breve caminhada desde o ponto de ônibus. Estava aliviado e feliz por finalmente ter chegado. Não que fosse tão tarde assim, mas porque logo... logo, estaria no acochego de minha cama, longe dos riscos das ruas. Uma leve brisa aliviava o abafamento daquela noite de início de dezembro.
Pé ante pé, atravessei a pequena sala da casa antes de alcançar a cozinha e chegar ao quartinho dos fundos, que dividia com meu irmão. Silêncio. Todos dormiam – ou pelo menos davam essa impressão. Helinho, meu irmão, chegava a roncar baixinho em sua cama do outro lado do quarto; minha mãe e seo Ivo, meu padrasto, pareciam desmaiados no quarto da frente. Silêncio total na casa.
Logo, também eu, já em minha cama, entregava-me aos braços de Morfeu. Não sem antes ainda curtir na memória flashs daquela noite gostosa com meus amigos do colégio. Haviamos ido ao teatro, incentivados pela Selma – aquela professora que nos dirigia naquela montagem de O Pagador de Promessas.
A Selma era gente fina, sempre incentivando-nos a ler, a ir ao teatro, a discutir as coisas que estavam acontecendo no país, a ter atitude (até hoje me lembro da bronca que ela me deu para eu deixar de repartir meu pixaim como se fosse cabelo de branco: “Por que você não penteia seu cabelo para trás”, inquiriu-me certa vez, ao final de um ensaio do Pagador de Promessas, sábado de manhã). Mas essa é outra história; voltemos ao que interessa.
Não sei dizer quanto havia dormido naquela noite, depois de jogar-me na cama. Só sei que, de repente, eu e o Helinho fomos acordados pelo choro conpulsivo de minha mãe, de pé na porta do quarto, no meio da noite. Imediatamente, pus-me de pé, a socorrê-la. O Helinho fez o mesmo e, desesperados, tentávamos saber o que havia acontecido.
Ainda chorando e soluçando muito, minha mãe agarrou-me em seus braços como que para certificar-se de que eu realmente estava ali, inteiro... vivo. O estado de choqe era tão grande que ela ainda não conseguia dizer claramente o que havia acontecido. Após alguns minutos, conseguimos convencê-la a sentar-se na beira de minha cama enquanto o Helinho ia até a cozinha pegar um copo de água.
Alguns minutos mais tarde, já um pouco mais calma e depois de cobrir-me de beijos misturados com lágrimas e catarro, que ainda corria de suas narinas, ela começou a relatar o ocorrido:
- Foi um pesadelo, filho – finalmente desabafou.
- Um pesadelo, mãe? E precisava todo esse escândalo? Nossa!!! – eu disse.
- Foi um pesadelo horrível, filho – ela prosseguiu. Eu sonhei que você tinha morrido. Os “home” tinham te matado. Eles descobriram que você andava se reunindo aos sábados com seus amigos para ler aqueles livros proibidos; andava falando mal do governo, fazendo teatro... e até dando corda para aqueles caras do sindicato, na fábrica....
As lágrimas voltaram a rolar dos olhos de minha mãe. Tentei acalmá-la novamente, dizendo que tudo aquilo era normal... que não estava fazendo nada de errado... que nada ia acontecer comigo ou com meus amigos. Mas não havia como convencê-la disso. Ao menos naquele momento. Pedi a ela então que terminasse de relatar o pesadelo.
- Então, filho – ela recomeçou. Eles descobriram essas coisas todas que você anda fazendo e foram lá em casa (nós ainda morávamos no João Ramalho, esclareceu) e te pegaram. Ai, filho, eu nem quero lembrar... – e voltou a chorar.
Mais alguns momentos depois, ela prosseguiu:
- Eles te pegaram, filho, te amarraram numa cruz, como Jesus, e te metralharam na minha frente. E eu gritava... pedia... “soltem meu filho, ele não é bandido; ele é bom... trabalhador...inteligente...” mas não adiantou, filho, eles te mataram. Eles ainda disseram:
- Tem de morrer, sim. Ele é subversivo, anda em más companhias, fala mal do governo...
- Mas eu estou aqui, mãe, e não vou deixar eles me pegarem, não. Sou trabalhador. Estudo à noite, não faço mal a ninguém. Não tem por que eles me perseguirem – tentava convencê-la – e a mim mesmo.
Depois de muita conversa e troca de carinhos, como há muito não acontecia entre nós, minha mãe acalmou-se e concordou em voltar para a cama e aos braços de Morfeu, antes que meu padrasto também acordasse.
Essa foi uma noite que dificilmente esquecerei em minha vida. Uma noite que descobri não só o quanto minha mãe me amava e se preocupava comigo, mas também, e principalmente, o sentido real da expressão “anos de chumbo”. Corria o ano de 1971.

Obs: Isso aconteceu de verdade. Não é ficção.

2 comentários:

Bosco disse...

Que coisa, hein, Ney... Vc diz; corria 1971 Acho que tudo e todos "corriam" naqueles anos em que o Brasil foi (des)governado pelo Partido "Verde (oliva)", Ney... Nao sei o quanto sua maezinha era politicamente engajada mas, instinto materno nao depende disso... A Selma faz falta, por aqui... Deve ter muita historia interessante sobre esse tema... Lembro de que, uma vez, estavamos ensaiando O Pequeno Burgues, no Panelinha e, de repente, tivemos de parar... Parece que "alguem" mandou parar... devia nao gostar de B. Brecht... Eu nunca soube bem o que aconteceu... A Selma, repito, deve ter coisas "engracadas" pra recordar... Vou mandar um recadinho pra ela, la no Orkut... Tambem, levei um "puxao-de-orelha" dela: Achava que eu era reacionario. Preocupei-me. Gostava da Selma e, embora nao soubesse o significado da palavra, o tom grave de nossa professora, esclarecia nao ser boa coisa... Demorei decadas para saber o que era "reacionario". Ainda assim, "penso" que sei. Quando procurei por um, nao achei mais ninguem... todos eles "...reis da vaselina, mudaram de carrao pra China e, jah nao querem nem saber...(Belchior)"... Quiseram me confudir, Neyzinho: A Russia tem milionarios em numero tal, para dar-se ao luxo de por uns na cadeia...Nada de Gulag, nao... Para com isso! Outros, foram comprar time de futebol bretao... A China, eh mais capitalista do que Wall Street... Os Estados Unidos, sao mais socilistas do que a Albania... O Comandante jah mandou o Meliah se mudar para La Habana... e, por ai vai... Dizem que eh possivel ver reacionarios e comunistas no Museu da Memoria Esquecida mas, eh caro ir lah... proletario nao entra... Rico sim; tem dinheiro mas, nao tem memoria... Eu lembro do Joao Ramalho, Ney; morei lah um pouquinho de minha vida... Eram tempos dificeis, mesmo para o bairro Joao Ramalho, lugar de gente pobre, laboriosa e, porque nao? reacionaria... Acho que ia ser um luxo, o bairro ter um preso politico, nem que fosse soh pra tomar umas borrachadas e voltar pra casa. Jah pensou o prestigioso "News Seller", predecessor do Diario do Grande ABC, noticiando "Estudante mantinha "aparelho" na rua Massaranduba"? Ia ser engracado ver os caras do DOPS amassando o taguah (esse era o nome daquele barro vermelho e pegajoso... acho que o Joao Ramalho foi o maior fornecedor de taguah do Brasil, nao foi, nao, Ney? Dava doh ver os caras furando poco, procurando por agua e, o enxadao bater no chao e, grudar no barro, para sempre...) Tudo isso passou, Ney, fique tranquilo. Os "home" foram todos levados a barra da justica e, as familias que perderam filhos, maridos, soldados, Clarices e "...tanta gente que partiu num rabo de foguete...(J.B./Elis)", tiveram sua dignidade reparada, com sobra, nao eh mesmo? Que bom, neh? Segura ai, Ney... segura ai...
Abraco, preto!
Bosco

Nei Souza disse...

Grande João Bosco!!! Só você mesmo para me fazer rir de um assunto tão traumático quanto aqueles anos de chumbo, às 6h30 da manhã de um domingão. Não me pergunte o que estou fazendo às 6h30 da manhã lendo “recuerdos” de um tempo triste para o país, para a nação, para a Pátria, mas rico em experiências, emoções e descobertas a nível pessoal para nós.
Acontece que a possibilidade de estar em contato com pessoas que fazem parte de minha história – do meu passado e do presente – faz loucuras comigo. Dona Marta é testemunha. Acho também que estou com pequeno problema de DNA (Data de Nascimento Antiga) que tem como um de seus sintomas tirar seus portadores da cama junto com as galinhas... Mas esta é uma outra questão, para uma outra hora.
Bosquinho, concordo com você que a querida Selma deve ter grandes histórias para contar a respeito daquele período nebuloso para nós. Ainda não perdi a esperança de que isso aconteça ainda aqui em nosso blog (afinal, ela também é uma das autoras). Aliás, sinto falta não só da Selma como também das sábias palavras de mestres como Nilza Maria, Helena Ballaguer, Marlene Breseghello... e tantos outros que fazem parte de nossa história.
Mas, voltando ao que interessa, também gostaria de ver os “home” amassando o barro vermelho da Massaranduba – como minha mãe e eu várias vezes fizemos de manhã para irmos trabalhar – não para prender ou torturar alguém mas para ajudá-lo. E você foi ainda lembrar do News Seller, hein???...
Menos mal que quase tudo isso passou e o “outro dia” da música de Chico Buarque chegou e hoje já não são eles que mandam mais... Bom domingo, meu brother!