sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

O guardador de rebanhos

Num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia
Vi Jesus Cristo descer à terra
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino
A correr e a rolar-se pela relva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe...


Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa de milagres e roubou três.
Com o primeiro fez com que ninguém soubesse que

Ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba as frutas aos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar as cousas.
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem nas mãos
E olha devagar para elas...

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda certeza
Que Ele é o Menino Jesus verdadeiro...

Essa é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?



Fernando Pessoa*

* - Não, o poeta português não estudou no Cesa, embora, tenho certeza, teria sido muito bem vindo à tchurma. O que ele está fazendo aqui, neste espaço? Acontece que, mesmo tendo falecido em 1935 (nasceu em 1888, em Lisboa), ele também fez parte do ideário de boa parte de nossa juventude; e esse poema, que está transcrito apenas em partes, foi-me apresentado àquela época e, como o Menino Jesus dele, vive comigo até os dias de hoje.

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